Arquivo do mês: janeiro 2006

Calcinhas, calcinhas

Esse negócio de ser pai e mãe ao mesmo tempo às vezes leva um pobre cretino como eu a situações embaraçosas. Não falo do primeiro sutiã, que por essa eu não passei, graças a bondade de Deus e proteção da Padroeira. Mas estive perto, na quarta-feira passada, quando ouvi de uma das filhas:- Preciso dar uma reforçada no guarda-roupa…

– Ugh?

– Camisolas, quero meia dúzia de camisolas. Esteja às 14h15 na loja tal. Não, não, você não vai escolher nada. Apenas pagar.

Às 14h15 lá estava eu na loja indicada. Eu estava, ela não. E me dei conta, outra vez, que era um personagem fora do contexto. Lembrei de velhas festas do Dia das Mães, às quais eu comparecia, claro. As senhoras me olhando, eu, o único homem da festa. Um dia, quase em desespero, estranho no ninho, solitário em meio a mães alegres e tagarelas, vi um homem à distância.

Ah, maravilha, e corri para ficar ao lado do companheiro, certamente tão vítima como eu da maldita história de pai e mãe ao mesmo tempo. Fui chegando, com licença, com licença, desculpe. Lembrei que alguma das senhoras poderia interpretar mal minha presença e gritar “tem um tarado aqui roçando na bunda sagrada de uma genitora!” Nada aconteceu e cheguei finalmente perto do homem. Era o fotógrafo. Merda! Exclamei, revoltado. “O que disse?”, indagou o fotógrafo. Nada, nada e inventei uma história de pretender tirar umas fotos com meus filhos, sabe como é, daqui a pouco eu procuro.

Relembrando o passado, não dei conta de um detalhe: ali estava eu cercado de calcinhas, milhares delas, de todos os tamanhos e formas, observado pelas vendedoras e seguranças da loja. Um tipo suspeito, claro.

Um segurança ligou o radiocomunicador e falou em código:

– Rassscoss, resthatha. Cassrossscho, rrasras…

Entendi perfeitamente:

“Atenção, atenção, velho provavelmente tarado está aprontando golpe na secção de calcinhas.”

Era eu o único homem na loja. Algumas clientes examinavam as calcinhas e quando me viam, reagiam como se eu estivesse olhando pelo buraco da fechadura enquanto vestiam e desvestiam a peça íntima.

Resolvi andar de um lado para o outro, para despistar. Fui até a porta, pelas bandas da Av. Portugal e fiquei com inveja das pessoas que, sentadas nos bancos, palitavam os dentes e esperavam a hora de voltar ao trabalho, protegidas pelas árvores da praça. “Rrassscoss, rassscos…” os seguranças continuavam a trocar mensagem em código. Resolvi telefonar de um orelhão. De casa informaram que a filha já havia saído.

Voltei à loja e houve um reboliço: “RRRASSCosss, rasssscos!” o velho tarado está voltando. Alerta geral, alerta geral!

Se o problema era olhar para as calcinhas, decido virar o rosto para a direção contrária. Provoquei uma agitação mais forte:

– Cassar, casssac. Rasssac, rasssac…

– Ele está olhando para as camisolas, ele vai atacar na seção das camisolas! Traduzi, já em pânico, que aumentou quando entraram duas policiais femininas. Cheguei a estender os braços para receber as algemas, mas duas moças não estavam interessadas em mim e passaram direto. Aí me bateu a curiosidade: que tipo de calcinhas usariam as garbosas militares? Estiquei o olho, fui me aproximando e, decepção: uma delas comprou uma caixinha, acho que meias. Alguém falou às minhas costas e quase saltei de susto!

Era minha filha, felizmente. Que na mesma hora iniciou a escolha das camisolas. Paguei no caixa e, saindo da loja, ainda ouvi a mensagem dos seguranças:

– Fassssscaaa, fassssca…

Traduzindo: “o miserável é pedófilo e está indo embora. Pobre mocinha…”

– Masscssc, masscssss, axaxaxaxax…

Entendi perfeitamente: “Maldito velho nojento”.

Fiz de conta que não era comigo, que jeito?

Euclides “Chembra” Bandeira
Jornalista

Publicado originalmente em 06/02/2000
Caderno Negócios
Jornal Diário do Pará

As ondas e a selva

Quando éramos pequenos, eu e meus irmãos, viajávamos muito com meu pai pelo Rio Amazonas, nas férias. A professora Riso, nossa mãe, do lado, vigilante, cuidando para que nenhum de nós caísse na água.

Dentre tantas viagens, lembro de um momento: segunda-feira gorda, o navio, um gaiola de casco de ferro, construção do início do século, europeu, cheio de cromados e que tinha até padaria a bordo, estava atracado num porto remoto do interior da Amazônia. Era noite e o gerador do navio estava ligado. Alguém ouvia um rádio, a Rádio Clube, naturalmente, que somente ela existia. E a Rádio Clube transmitia sua grande Batalha de Confete, tradicionalmente realizada às segundas-feiras de Carnaval.

Não lembro qual escola desfilava àquela hora da noite, nem de que falavam os locutores de rádio, certamente de roupas adequadas, talvez até paletó e gravata. Ou com uma faixa de pirata na cintura, uma camisa e colar havaianos? Um quepe de oficial marinheiro? Sabe Deus. Não lembro do que falavam, já são muitos anos passados, mas recordo perfeitamente que me deu vontade de estar lá, na Av. Presidente Vargas, palco tradicional do evento.

Toda vez que lembro do episódio, fico matutando sobre as ondas de rádio e seus percursos pela selva amazônica. Um dia chegou uma carta do Canadá, de uma região remota, um cabo sei lá onde, cujo autor dizia que ouvia perfeitamente as transmissões em ondas curtas da Rádio Marajoara, que maravilha! Só que alguém lembrou que os tradicionais anunciantes do comércio paraense não sonhavam em vender ferragens, sapatos, material elétrico e fazendas diversas aos canadenses.

Dentre as belas vozes que cruzaram as matas, os campos da Amazônia, rios e baías, lagos e igarapés, um destaque indiscutível para Almir Silva. Ele fazia o programa “Alô, alô, interior”, uma espécie de correio eletrônico realizado com a picardia do grande locutor. Almir, chamado pelos amigos de Armir, justamente devido ao programa, pronunciava o título de modo diferente, ligando as palavras: Alôralôinterior.

Um dia, alguém da ilha do Marajó mandou uma mensagem aos parentes da cidade: “Estamos chegando hoje a Belém. Milico passando mal”. A graça do programa era que após quase todas as mensagens, muitas vezes escritas por gente simples, Almir fazia um comentário jocoso. Para a mensagem que dava conta da saúde de Milico, ele reservou uma pérola, hoje inserida na história do rádio paraense. Foi dizer a mensagem e comentar: – “Essa é boa…! É a primeira vez que eu ouço falar de um milico passando mal…”

Havia um detalhe: estávamos em plena ditadura militar e os setores de informações, os arapongas, tinham especial atenção pelo programa do Almir, que bem poderia estar mandando mensagens cifradas a perigosos guerrilheiros. Acabado o programa, Almir foi em cana, preso à porta da velha Rádio Marajoara, no bairro de Nazaré.

O rádio e o carnaval são parceiros inseparáveis, mesmo hoje, com tanto avanço. As ondas de rádio percorrendo a selva, varando obstáculos, correndo, correndo, até explodir num radinho qualquer, escondido num canto amazônico, transformando-se, então, em música e vozes que descrevem a beleza das fantasias, alegorias e os corpos esculturais das mulatas.

Há alguns dias, estava eu em companhia do Ambire e do Aranha do Café Santos, tomando uma cervejinha e comendo leitão assado, quando me aparece o Almir, meu velho parceiro de botecos do comércio e Ver-o-Peso. Ele falou comigo através de sinais. Não perguntei nada, com medo do pior. E torço para que seja mais uma piada do Almir, sempre galhofeiro, ou algum problema passageiro.

Cabe imitar a picardia do velho mestre:

“Mensagem para Almir Silva, em qualquer canto da cidade: Aloralô, Almir, aloralô Almir, volte logo ao trabalho. Os alôs do passado continuam cruzando a mata, cada vez mais distantes. Precisamos de novos. Quem escutar essa mensagem, favor transmiti-la ao destinatário.”

Euclides “Chembra” Bandeira
Jornalista

Publicado originalmente em 05/03/2000
Site belemdopara.com.br

Convite para tomar açaí

Açaí antes da chuva da tarde. Açaí fino, médio e grosso. Açaí especial. Ou açaí papa. Na cuia. Na tigela. Açaí com farinha baguda. Açaí com tapioca. Açaí de pobre e de rico. Açaí depois do almoço. Ou almoçar açaí. Com peixe frito. Pescada, filhote ou pirarucu. Açaí com camarão. Açaí com jabá. Açaí até com pupunha. Açaí geladinho e bem doce. Açaí em família. No sábado. E em qualquer dia. Açaí que dá preguiça e pede sesta na rede. Açaí que deixa a boca roxa pra tornar paraense o sorriso. E pinta os dentes, a língua, os dedos e até a roupa. Açaí que marca por dentro e por fora. Açaí que tem bandeira pra se anunciar. Açaí, minha bandeira vermelha. Açaí da minha terra. Açaí do meu Pará. Açaí em Belém do Pará.

Maria Stella Faciola Pessôa Guimarães
Escritora