Ausência da palavra empregada

Sem precisar provar nada para ninguém. Eu estava alí, sem saber o que viria depois. Até hoje eles não sabem o que tudo representava. Era apenas um sonho. Um sonho de liberdade.

Os braços foram cruzados. E na expressão errante, as lágrimas perderam o contrôle. A razão se autodefiniu como indecisa, pois os homens estavam perdidos. A emoção. As palavras contraditórias se faziam inaudíveis.

O homem estava só. E assim ele permaneceu até a próxima pergunta. A palmatória e o fio elétrico reluziam na claridade quase vermelha, naquele quarto escuro, onde se via apenas a mesa e duas cadeiras.

As perguntas eram cada vez mais ácidas, maldizentes, burras e traiçoeiras. O homem dominava o espaço. Não o espaço que se via que a terra era azul. Azul alí era a cor dos olhos do homem que me questionava:

– Por quem eu tinha torcido na Copa do Mundo de 70?
– Onde eu estava na Copa do Mundo de 70?
– Com quem eu estava nos jogos da Copa do Mundo de 70?

A penúltima pergunta me deixou desnorteado: Cante o Hino Nacional sem nenhum erro. Mesmo nervoso e apavorado eu ia respondendo todas as perguntas. Eu não podia comprometer ninguém. Até cantar. Eu cantei o Hino Nacional.

Eu estava nú. As mãos inchadas. O corpo marcado por choques elétricos, pois eu não soube responder quem era o autor do Hino Nacional e do Hino da Independência.

A minha visão estava sumindo. O sangue coagulava nas minhas pálpebras e eu não podia limpar. Além de não ter água o dia inteiro, as minhas forças se esvaiam na comoção de não lembrar mais nada. Eu só pensava no que tinha feito. Sim, eu tinha pichado o muro com lembretes para o dia seguinte, pois essa era a única maneira de nos comunicarmos.

O grito ofendido do General para o Coronel de olhos azuis, pedindo ação, respostas que não sabíamos dar.

O quarto não era quarto, era um porão com divisórias, com alguns mortos jogados num canto. E a palavra empregada era tendenciosa, mostrando rostos saudáveis, como se fossemos nós. “Os prisioneiros bem tratados pelo regime”.

A televisão era a cúmplice de quase tudo que acontecia. O sonho inconcebível marcou demais a palavra empregada.

Mario Lucio, cronista, poeta e bibliófilo

8 Respostas para “Ausência da palavra empregada

  1. Caro Mario Lucio, não o conheço mas aprendi a admirar o seu trabalho aqui neste blog. Você já lançou algum livro?

    Lendo o seu texto, lembrei dos famigerados anos onde o DOI-CODI era o terror e como disse a Dilma há algum tempo atrás, todos eram obrigados a mentir para salvar a sua própria vida e a dos amigos. A tortura era atividade corriqueira e o sofrimento era o sentimento arraigado nos corações de todos que lutaram contra a ditadura militar.

    Parabéns por mais este texto brilhante!

  2. Oi Mario!
    Sempre admirei suas obras. Parabéns pela sua fase revolucionária. Ela ajudou muito o Brasil de hoje. E que sirva de exemplo para a juventude de hoje, não deixar que aproveitadores façam hoje o que fizeram ontem.
    Continue nos dando esses textos maravilhosos.
    Abraços Revolucionários!

  3. Mario, meu amigo e companheiro!
    Eu e mamãe estamos morando em Salvador. A minha surpresa de hoje, foi lembrar os tempos duros da ditadura através de um telefonema que uma prima me deu, comentando o sucesso que está fazendo o Tucupi. De hoje em diante eu não vou deixar de abrir um dia. Para ver e sentir a tua sensibilidade e amor com a palavra e o desenvolvimento do texto.
    Continue escrevendo cada vez mais.
    Estamos essperando o livro, pois sabemos que já está quase pronto.
    Obrigado pela emoção!

  4. Mario Lucio

    Meu querido amigo, você não sabe como eu me sinto orgulhoso de ler e sentir a emoção que o teu texto me causou. Eu sinto principalmente, por conhecer muitas histórias que me contavas dos anos duros da repressão; onde vários amigos teus sumiram ou morreram.
    Abraço do eterno amigo e admirador.

  5. Mario, meu amigo querido, por falta de tempo eu não escreví logo. Você está realmente genial em todos os seus textos, mas esse é especial. Eu não vivi essa época, mas lí muito sobre ela. E como você relata parece que estou vendo um filme comigo mesmo, pois eu me sinto dentro da história. Vamos a luta para que não aconteça mais esses tristes momentos da nossa história. Esse é o momento. As eleições são os principais motivos para que nada mais aconteça. Como aconteceu na Venezuela.
    Abraços e um grande beijo.
    Fá.

  6. Caro Mario Lucio, eu não te conheço mas passei a admirar os teus
    textos, um amigo nosso que me indicou o Tucupi e, desde esse momento eu não deixei de ler a variabilidade dos teus temas. Eu vivi um pouco esse último texto, na época eu estava na Universidade Federal do Pará, cursando Sociologia e agia intensamente na UNE. Estive clandestinamente em várias células e consegui sobreviver. Eu faço parte das tuas memórias nesse texto. Eu nunca vou esquecer o teu nome.
    Ótimo futuro para você, meu companheiro!

  7. Incrível lembrar dos tempos da ditadura, pois diga-se de passagem, eu estava nascendo, porém, quem sabe estive lá numa vida passada e me veio tal lembrança…mas enfim, o que importa mesmo não são os fatos em si, mas sim as boas intenções e as grandes emoções que ainda estão por vir!! Sucesso, meu dindo!!
    Bjs

  8. Ótimo texto!
    Gosto bastante de escritos dos tempos da ditadura! As revoluções sociais, culturais, musicais…
    É sempre bom passear por tuas palavras.
    Um forte abraço.
    Natália Moraes

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